História da pior tragédia da 1ª CArt

Obs: Estes textos foram escritos em 2010 no extinto Blogorama, ( Os Guerreiros da Paz)
Como na altura o meu serviço era interno, não serei própriamente eu a pessoa indicada para contar estas histórias, portanto, estes textos de minha autoria podem não estar 100% correctos, se alguém souber explicar isto melhor do que eu, por favor corrijam!!!
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Nesta altura, eu ainda não fazia escoltas na rua, o meu serviço era interno e por isso não estava presente para hoje poder narrar a história com conhecimento próprio com todos os pormenores, pontos e vírgulas, tenho-me empenhado em saber toda a verdade, como tudo começou, algumas coisas me foram relatadas, mas quem as sabia contar com todos os detalhes já cá não estão entre nós, os mortos no local e o Ex. Furriel - Álvaro Marinho da Silva, que devido aos factos, regressou com demência profunda, e assim viveu durante cerca de 30 anos, tendo falecido a 13- 01- 2006,
E um camarada que na altura foi sequestrado pelo MPLA, ( Ex 1º Cabo Clarim João Maneiras Marmô), mas quando tentava falar com ele sobre o assunto, sempre notei que não gosta de lembrar o caso e ponto final.
Foi no dia 3 de Fevereiro de 1975, no mercado de São Paulo, na avenida do Brasil, Luanda Angola,
Tudo o que me disseram até agora.
Nesse dia 3 de Fevereiro, um motorista civil branco atropelou um uma criança negra, como é sabido, nessa altura os ânimos andavam em alvoroço e a mais pequena coisa dava origem a barbaridades de selvajaria, casos como este dava origem à justiça ou injustiça popular, aí se instalou uma grande confusão, onde a população local queriam retalhar o motorista, que entretanto se tinha refugiado numa casa, mas foi cercado, deitaram fogo na casa e caminhão e na sequência lá foi chamado um pelotão da 1ª Cart 6323, sob o comando do Ex. Alferes José Domingis dos Santos, e que em tal situação delicada o comandante da Cart, Ex. Capitão Ramiro Pinheiro, fazia-se estar presente.
O capitão Ramiro Pinheiro era um homem de paz, pelas poucas coisas que ouvi de camaradas sobre o assunto, no momento estava única e simplesmente a pedir calma com as mãos no ar, quando foi atingido por uma rajada, no mesmo instante em que sucedia o mesmo ao Ex Alferes Santos, outro homem que se pudesse flutuar, ele o faria para não pisar as formigas,
Ramiro Pinheiro deixou uma jovem viúva e dois filhos, o mais novo dois meses mais velho do que o meu filho mais velho.
O Ex Alferes José Domingos dos Santos e eu tinha-mos viagem marcada para dois dias depois, ele vinha selebrar o seu casamento e eu vinha conhecer o meu filho mais velho, na altura com dois meses e meio, (05 de Fevereiro) o meu amigo Ex Alferes Santos não deixou descendentes.
Texto de Albino Lima
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Sobre esta tragédia
O Ex- Alferes Pena escreveu:
Sinto uma certa dificuldade em falar do meu Ex-Capitão Ramiro Pinheiro.
Ramiro Pinheiro era um homem com uma inteligência acima da média, abnegado, visionário e voluntarioso.
Era licenciado em Engenharia Civil pelo Instituto Superior Técnico, onde era Assistente antes de ingressar no serviço militar obrigatório.
Era jogador de andebol do Sporting Club de Portugal.
Tinha uma vida perfeitamente estabilizada antes do serviço militar.
E foi este HOMEM BOM que se cruzou no meu caminho como meu Comandante de Companhia.
Tínhamos concepções diferentes do «modus operandi» no meio de uma pré-guerra civil instalada em Luanda em Julho de 1974.
Era um pacifista e conciliador por natureza, enquanto eu e o Ex-Alferes Passeira éramos mais realistas. O Ex-Alferes Ramos ficava-se pelo meio termo. Com o Ex-Capitão Ramiro Pinheiro alinhava o Ex-Alferes Santos.
Tivemos algumas divergências apesar da amizade que nos unia.
Cheguei-lhe a dizer que com o tipo de negros com que nos deparávamos no dia a dia nos musseques eu só tinha uma linguagem que era a da minha G3 - isto após muitas situações de conflito ou «maca» que tivemos que enfrentar e nas quais não fomos envolvidos pela multidão, porque essa era uma regra de ouro: nunca nos deixarmos cercar.
O Ex-Capitão Ramiro Pinheiro talvez por desconhecimento continuava ingénuo e crédulo que com o diálogo os problemas se resolviam todos.
E daí o ter-se deixado envolver no meio de uma confusão junto ao Mercado de S. Paulo e que, devido à presença de elementos armados do MPLA mal preparados, mal formados, amedrontados e em pânico, dispararam indiscriminadamente sobre os nossos militares, tendo o Ex-Capitão Ramiro e o Ex-Alferes Santos sido mortos quando tentavam uma conciliação.
A ele talvez deva o facto de estar hoje vivo. É que segundos antes de ele ter sido atingido mortalmente eu passei pelo local onde ele estava e a multidão ao ver mais militares nossos enfureceu-se e lembro-me perfeitamente de ele me ter dito:
- Fuja daqui.
A minha sorte é que estávamos num Unimog 404 a gasolina (de arranque rápido) e perante dois indivíduos com a farda de caqui do MPLA a cruzarem as armas à frente da viatura, com o intuito de nos barrarem a saída, eu só tive tempo de dizer ao soldado condutor Cascabulho:
- Acelera e sai daqui.
Quando chegámos à Rua António Enes ouvimos disparos vindos do local de onde havíamos saído, mas nunca suspeitámos que fossem tiros disparados contra os nossos camaradas.
Quando, passados uns cinco minutos volto a passar pelo local já a multidão tinha dispersado e recebi a notícia que o Ex-Capitão Ramiro Pinheiro e o Ex-Alferes Santos tinham sido feridos mortalmente e que o Capitão Figueiredo dos Comandos, que também se encontrava no local, tinha ido em estado grave para o Hospital Militar. Havia, dos graduados presentes, escapado o furriel que se abrigou atrás do pneu do Unimog.
Senti a maior raiva, o maior ódio e a maior sede de vingança que alguma vez senti na vida.
Todas as Companhias do COTI 1 aquarteladas no Grafanil ficaram a saber do sucedido via rádio e imediatamente quiseram sair do quartel para efectuar a retaliação.
Foram proibidas pelo Estado Maior General de o fazer.
E a nós - os militares da 1ª CArt do 6323 - puseram-nos distribuídos de modo a não podermos juntos vingar a morte dos nossos camaradas.
Lembra-me que fiquei numas bombas de combustível da Shell ao fundo da António Enes e antes da linha do caminho de ferro que nos separava do Cazenga.
Porém antes de sermos «acorrentados» parei junto à fábrica da JOMAR. Aparece-me um indíviduo com a farda do MPLA, armado com uma Kalashnikov, e, quando pára o o Unimog, o sujeito, completamente possesso e com os olhos a saltarem-lhe das órbitas, começa a gritar com a arma apontada para mim:
- Asassinos... assassinos...
Com a maior calma possível, para uma ocasião delicada e até hoje única, e o maior sangue frio (trazia apenas uma Valter de 9 mm na cintura e uma varita de madeira na mão direita) salto rapidamente do Unimog e, sem nunca deixar de lhe olhar olhos nos olhos e de verificar o menor gesto do dedo no gatilho, digo-lhe:
- Então, camarada, o que se passa? Acabo de chegar e não sei o que se passa. Há algum problema?
E ele continua a gritar:
- Assassinos...
Enquanto vou falando com ele vou-me aproximando dele e, quando ele me deixa chegar junto de si, deito a mão direita à Kalash e com a esquerda agarro-o pelo pescoço imobilizando-o. Entretando os soldados saltam do Unimog e tomam-conta dele.
Nessa noite teve um acidente na estrada do Cacuaco e entregou, por ironia do destino, a alma ao Criador e nunca mais voltou a ameaçar com qualquer arma nenhum camarada nosso.
Não me lembro de quem foi dar a notícia da fatídica morte do nosso ex-Capitão à sua esposa que estava a viver há pouco tempo com ele em Luanda.
Sei que foi o meu grupo de combate (o 3º.) a prestar-lhe as honras fúnebres na Capela do cemitério da Estrada de Catete, porque me lembra perfeitamente que tive que dar umas sessões de manuseamento de armas a relembrar como se fazia o funeral armas.
Paz à sua alma e hoje, a 34 anos de distância, chego à conclusão que a guerra é completamente cega: não escolhe entre os bons e os maus. Porque se tal axioma não fosse verdade o Ex-Capitão Ramiro Pinheiro e o Ex-Alferes Santos (do meu curso de oficiais), ainda hoje poderiam estar entre nós.
Pena